Writing, Flying and Huevos Revueltos

November 02, 2006

O meu bairro em Montreal

Fazem dezessete anos que moro no meu bairro. Ele é bótimo. Uma vez encontrei com uma carioca recém-chegada que exclamou: "Vc mora no Leblon de Montreal?!" Aí fiquei sabendo como os novatos chamam isso aqui. Em todo caso, só não temos a praia, mas temos, só no bairro, 5 excelentes piscinas públicas (free) abertas no verão e 3 no inverno. E todas têm saunas.


Temos também quadras de tênis, espaços p/ piquenique, p/ volley, futebol, cinemas e festivais de boa música, e teatro, grátis, tanto no inverno quanto no verão; dois parques enormes e tranquilos p/ passear, correr, fazer ski, badalar, ir dançar aos domingos (sem falar nos cursos de tango ao ar livre e nos festivais de verão com cinema e música, e que acontecem dentro do parque), etc. Temos Cafés Literários (que estão ficando raros), festivais de arte com performances (também rareficando), cinemas de arte (também rareficando), e pessoas interessante (também rareficando). Sem falar na riqueza do conjunto arquitetônico, um dos mais bem conservados nas Américas (e que está sendo destruído por novas construções sem gosto e sem alma).

Justamente, mesmo com tudo isso, o bairro era ainda melhor, até sair uma reportagem na Wallpaper alemã, sobre design fashion, classificando-o como o quinto melhor lugar p/ se morar nas Américas. Depois desta malfadada matéria, tranquilamente, o caos foi se instalando e de bairro de artistas e intelectuais, ele está se transformando em um frutífero investimento p/ os interesses de promotores imobiliários com ânsias vampirescas, e aonde se instalou uma fauna heteróclita e sem creatividade, sem classe ou elegância, com complexos de novos-ricos, muito dinheiro e sem cultura alguma, cheiradores de cocaína, clientes de prostitutas, alcóolatras, passeadores de cachorros e donos de 4&4.

A decadência está instalada. Os lofts dos escultores e dançarinos encareceram de repente e eles tiveram que partir porque não podiam mais continuar pagando o novo preço do mercado, deixando locais que foram sendo transformados em lofts modernos e renovados à velocidade da luz. Trouxeram um monte de cafés americanos, clubs de trocas de casais (quer maior decadência do que uma orgia organizada quando o casal nem é mais capaz de transar? voilà a utilidade das drogas e do álcool...) , trouxeram também muita falta de paciência no trânsito, falta de bom humor, +++ falta de civilidade, falta de estacionamento, muito ponto de droga, muita prostituição, muito roubo e muitos pedófilos, além de encherem as calçadas e os parques de merda, xixi e catinga de cachorro. A salvação é que no momento ainda resta, digamos, 50% dos antigos moradores, pré-diluvianos do ciclo Wallpaper.

Fazem doze anos que moro na mesma casa, aliás, um prédio com três andares e três casas. Não são apartamentos não, não do jeito que existe no Brasil. Cada um tem seu próprio número e somos independentes um do outros, com entradas independents e exteriors, escadas exteriors para cada apartamento. Mas é um prédio só.

Embora adore o meu bairro e sempre tenha tido uma ótima relação com meus vizinhos, há dois anos atrás tive como vizinhos de cima um casal com um dogue alemão, aquela raça de cachorros caçadores enormes e musculosos, por isso mesmo chamados de molosses, do tamanho de um pônei. Eles tinham também um daqueles 4&4 também eeeenormes, com aquelas rodonas parecidas carro de guerra, o tipo californiano. E só saíam com o cachorro durante 15 minutois por dia. Quer dizer, o bicho era todo descontrolado e meio paranóico, cheio de energia acumulada. Desconfio, aliás, que o cara tinha um complexo de pênis minúsculo porque tudo p/ ele tinha que ser grande e chamar atenção; quando chegava em casa, às 3 ou 4 da manhã, a música tinha que ser alta.

Em resumo, estes dois anos foram difíceis porque eles viviam na rua, inclusive à noite, e o bicho em casa na compagnia de 2 gatos fazendo uma guerrinha contra nossos nervos, derrubando objetos, chorando, e pulando à ponto de nos acordar quando os mestres chegavam. Felizmente, eles se mudaram p/ uma casa no campo com quintal, lugar mais condizente p/ aquele zoo. No apartamento deles entrou um casal alemão, diretamente vindos da Alemanha, muito simpáticos os dois. O único problema é que a menina, sobretudo, desce as escadas e bate a porta como se tivesse raiva de existir. Um caos. Aí, antes, eu ia lá e me baixava a vizinha da Samantha, aquela chata mesmo, sorridente e simpática -até levei um Panetone italiano, delicioso por sinal, porque era perto do natal-. A primeira vez eu expliquei p/ eles que o nosso prédio é histórico, tem 120 anos, e que fica num bairro excelente e tão antigo quanto o prédio, cheio de histórias, blá, blá, blá...e madeiras, portas e muros VELHOS. E terminava p/ pedir que quando eles chegassem, sobretudo às 3 da manhã, não batessem a porta com força, e não subir as escadas correndo porque eles me acordavam com o barulho. Eles sorriam, me diziam que eram pessoas educadas e 'profissionais', embora eu não veja a relação, acho que na Alemanha os 'profissionais' pensam que não fazem barulho!!! Mas, no dia seguinte, ou 2 dias depois, eles recomeçam. Sempre.

Fui lá umas 5 vezes, sem partir p/ a ignorância porque não é meu feitio, até que cansei. Aí eu cansei mesmo de pedir que parassem com o barulho. Não digo mais nada. Consolo-me dizendo que, de tudo quanto é forma, eles incomodam mil vezes menos que o cachorro; quer dizer, o barulho maior é durante o dia e isso é fichinha p/ quem foi acordada no meio das suas noites, durante 2 anos, por um molosse frustado. Para o meu bem estar psicológico e mental, decidi fazer abstração do barulho; a menina vive em casa porque faz doutorado, e é daquelas alemãs enérgicas, que vive subindo e descendo escadas correndo... mas eu tanto tentei que consegui. Eu os ignoro totalmente, à não ser quando dou com eles na frente da casa.

Antes, nestas horas, a vizinha da Samantha me possuía, eu sorria e dava um bom dia educado. Só isso. Depois que verifiquei que eles não querem parar com o barulho, quem baixa é o Horatio do CSI:Miami.

Deu p/ entender?

Bom, esta semana, me vem todo assustado o carinha que faz a limpeza p/ me dizer que chegando, ele deu de cara com um homem arrombando a porta dos alemães; o homem fugiu e ele veio me perguntar se eu não tinha ouvido barulho. Eu disse que ouvi sim, um barulhão danado, mas acrescentei que isso não era excepcional porque barulho vindo da casa deles eu ouço sempre porque fazem sempre muuuuiiiito barulho, frisei, honesta. À noite, a alemã não veio falar comigo, fui eu que fui perguntar sobre o tal ladrão porque estava curiosa p/ saber o que os policiais disseram. Ela visivelmente, estava com raiva porque eu não fui 'averiguar' a origem do barulho! Respondi-lhe que o barulho não era maior do que o que eles fazem diariamente. Aí, ela inocentemente, me disse que "quando a gente ouve barulho, tem que ir lá averiguar, mesmo se estiver achando que se está incomodando o vizinho...!".

Aí, eu fiquei assim, meio parada, tentando refletir se tinha entendido bem, e baixou em mim o Horatio do CSI:Miami, com aquele jeito de raposa noturna, fria, enracinada, cínica e meio psicótica.

Não é que a mulher estava pensando que eu era mucama?! Bom, isso até ela ver o Horatio de perto, cara à cara, porque depois ela anda cautelosa.
Ontem e hoje, ela está silenciosa. Que nem anjo de presépio.