Writing, Flying and Huevos Revueltos

August 23, 2006

Fotos dos dois Jacks: London e Kerouac

Anjos perdidos: livros, Jack Kerouac, Jack London e outros


Antes de Kerouac, eu tinha descoberto Jack London.

Durante algum tempo, eu venerei Jack London. Comecei lendo ele na biblioteca de Barra Mansa, aquela salinha raquítica que eu já tinha revirado de ponta à rabo mas que era tão pobremente insuficiente p/ a minha sede... Depois venerei ele durante algum tempo, na minha adolescência quando fui atrás de seus livros na biblioteca da AMAN (ahahaha... a biblioteca da AMAN era muito boa mesmo!) e li tudo que me caiu nas mãos. Sempre achei que Kerouac fosse herdeiro de London e inclusive, eles são fisicamente parecidos em algumas fotos - incrível! É desta imagem que me recordo num dos livros de London da minha adolescência: ele em cima de um barco, escrevendo, roupas de couro, cabelos ao vento-.
De London, me vem a memória de Kipling e James Joyce. Com eles, tranquilamente, vieram vindo os outros mais.

Um dia o Ricardo me apareceu lá em casa com o "On the Road" embaixo do braço p/ presente. Porquê? Não me lembro. Talvez porque eu vivia viajando e fazendo planos p/ futuras viagens, querendo saber o que existia do outro lado do muro, com uma sede e vontade de dizer 'sim' à tudo. Não sei. Amador de cinema, foi também Ricardo quem me apresentou à obra de Fassbinder no tempo que só tinha Fassbinder no Instituto Goethe. E ele me explicava tudo. Eu tinha 18 anos e aquilo tudo era tão encantador, novo, sedutor e profundo que me senti irremediavelmente subjulgada pelo mundo descrito no "On the Road" à ponto de começar à encontrar pela frente na minha vida algumas figuras parecidas sair direto de lá. Encontrei em Porto Alegre um digno herdeiro dos Beat, que fazia parte dos que se chamavam Darks na época e se vestiam com aquelas roupas negras e elegantes de Berlim, louros e bonitos, com os sapatos grandes de pontas quadradas que eu só encontraria em Montreal alguns anos depois....

Mas a Beat Generation me deixou um gosto inesquecível dos The Subterraneans na boca e na mente. Eu amei este livro e quando cheguei em Montreal, ele estava no fundo do meu pensamento, sobretudo quando eu observava aquele pessoal jovem que se instalava na estação do metrô de Santa Maria -a mesma desilusão... e mais ainda, tinha o jazz, tinha o inverno frio e as noites nebulosas através da cidade sonolenta de neve-. E eles tinham a minha idade. E eu era mais jovem do que Jack Kerouac quando ele, bêbado do amor de uma deusa cigana negra, escreveu este livro em 1958; é totalmente uma obra sobre o amor, descrevendo uma relação que foi sendo detalhada intimamente desde a descoberta do início e as surpresas do fim que ia se anunciando. O título do livro ficou sendo Os Subterrâneos graças à Allen Ginsberg, que descrevia os personagens, reais, do romance nestes termos:…"They are hip without being slick, they are intelligent without being corny, they are intellectual as hell and know all about Pound without being pretentious or talking too much about it, they are very quiet, they are very Christlike[…] ".

Uma pequena pausa: a primeira vez que ouvi o nome Kerouac em francês, eu estava no Cheval Blanc com a turma do François, todos amantes de jazz, e não entendi que Jo estava falando de um dos meus escritores preferidos simplesmente porque como boa brasileira, eu repetia a pronúncia errada dos anglófonos que têm um sotaque horrível quando falam francês. Não que eu seja excelente em francês, mas realmente existe uma grande diferença nas duas pronúncias. Mas geralmente, os anglófonos que sabem que é um nome francês e mesmo se não falam a língua, procuram a pronúncia mais perto possível da original. A gente diz o nome exatamente assim, devagar e em 4 sílabas, a última sendo mais rápida do que a penúltima: ke-rru-aaa-ki.
Isso tudo porque muita gente não sabia ou preferiam ignorar achando que fosse um simples detalhe -ao menos no Brasil na época em que eu morava lá e lia os livros em português e nunca li referência à sua origem- que a família de Kerouac veio do Québec, eram canadenses franceses. Ele se chamava Jean Louis Lebris de Kerouac.
Embora eu não seja conhecedora profunda da obra de Kerouac, acho que todos os que são deveriam vir aqui p/ observar o comportamento social p/ poder entender as raízes desta pequena comunidade francófona de Lowell na época. Não entrarei demais no assunto, mas eu poderia quase jurar que no sangue da família Kerouac, como no sangue da maioria dos canadenses de origem francesa, tem sangue índio. Sem falar que aqui mesmo nos deparamos frequentemente com muitos tipos físicos parecidos com os de Kerouac (os canadenses franceses têm esta característica de serem bonitos, muito bonitos mesmos com estes profundos olhos azuis de lobos de mar - descendência gaulesa obriga). Inclusive com os olhos em amêndoas (como minha filha e o pai dela), característicos dos indígenas embora eles sejam de raça branca. Acho que a personalidade de Kerouac e sua necessidade de verdade, espiritualidade e liberdade, é em grande parte devedora destes antepassados autóctones.

E depois? bom, à partir de Kerouac, cheguei à John Fante e "Arturo Bandini", Ginsberg, William Burroughs, Antonin Artaud, Andre Breton, poetas obscuros japoneses antiquíssimos, Rimbaud, Baudelaire, Jean Genet, Keats... -eu já amava Byron- e Percy Shelley, alguns poemas de Walt Whitman e os contos de Edgar Allan Poe, e outros, muitos outros... Isso só aumentou a minha fome.

Mas a figura central e que foi a base p/ a existência do movimento Beat, inspirador de obras marquantes na literatura através da pluma de John Clellon Holmes, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e muitos outros, foi Neal Cassady, sem o qual o movimento Beat jamais existiria. Seu estilo espontâneo de escrita nas trocas de correspondência com os amigos, inspirou Kerouac à inventar a noção de prosa espontânea.

Bonito, selvagem, olhar cândido de uma alma sofrida, Neal Cassady foi educado por um pai alcoólatra em hotéis de beira de estrada e vagões de trem. Tendo vivido grande parte de sua juventude em escolas reformatórias e prisões, ele desenvolveu instintos suaves de um ilusionista na pele de um ladrão de carros com uma habilidade original para seduzir pessoas através da sua enorme fome de amor e de vida, e pelo temperamento tão angelical quanto demoníaco. Mas um demoníaco profundo, silencioso, espiritual, atormentado e sedutor. Como pode-se ser tudo isso ao mesmo tempo é a base do enígma Neil Cassaday. Para Kerouac, ele era um anjo perdido.

Diziam que ele nunca tinha tempo de escrever nada porque estava ocupado demais em viver. Relacionando-se com várias mulheres e tendo alguns filhos, Cassaday viveu uma relação "oficial" e um pouco mais duradoura com Carolyn, que também foi durante um curto período de tempo amante de Kerouac formando os três um menage à trois tão atormentado quanto obscuro.

Encontrado desmaiado ao lado das trilhas de trem uma manhã e levado às pressas ao hospital em estado de coma, Neil Cassaday morreria algumas horas mais tarde, em 1968. Kerouac viria à morrer um ano depois.


"He was simply a youth tremendously excited with life, and though he was a con-man, he was only conning because he wanted so much to live and to get involved with people who would otherwise pay no attention to him. He was conning me and I knew it, and he knew I knew (this was the basis of our relationship)." --- On the Road, pg. 4

"Have you ever seen anyone like Cody Pomeray?-- a young guy with a bony face that looks like it's been pressed against metal bars to get that dogged look of suffering... who walks as fast as he can go on the balls of his feet, talking excitedly and gesticulating... There are some young men you look at who seem completely safe, maybe just because of a Scandanavian ski sweater, angelic, saved; on Cody Pomeray it immediately becomes a dirty stolen sweater worn in wild sweats." --- Visions of Cody, pg. 48



K.
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