Writing, Flying and Huevos Revueltos

February 06, 2006

Um dia eu fui tomada por uma impressão que me marcou profundamente, ficando a coisa marcada em meu corpo como uma febre sem razão, sem mal estar aparente, só com este calor que queima e um calafrio que esfria os ossos.
Eu suava frio! E esta percepção ficava de mais em mais forte como se a coisa fosse mesmo uma realidade palpável e, assim, bêbada de ausências que eu nem podia chorar, vi uma mulher caminhando em minha direção. Ela vinha do meio do nada, saída das pedras úmidas, e nas mãos, uma espécie de animal puxado por uma coleira. Quase perto de mim, virando-me para olhá-la, fiquei por um momento sem reação quando meus olhos encontraram sua penumbra - porque eu não conseguia vê-la distintamente? - . Surpresa, observei por um instante fugidio a lentidão de seus movimentos, como se ela bebesse cada segundo que passava, como se houvesse de vez em quando uma parada no tempo e como se eu fosse obrigada à seguir o mesmo ritmo. E então, ela veio chegando nesse quase tempo parado e lançou um sorriso - pude perceber o sorriso na sombra indistinta, eu sei, foi verdade, não enlouqueci- e um gesto. E eu não pude acreditar!

Mais real do que eu mesma… eu pensei, hipnotizada. À nossa volta, o tempo vivia seu caminho independente de nossa presença, como se todos ao redor tivessem uma existência interligada através de um laço que por nós tinha-se quebrado; entre nós, eu e eles e entre ela e eles. Mesmo percebendo o movimento que se passava de gente indo e vindo rindo falando, eu sentia no entanto a distância. Por um breve instante a idéia de que estivêssemos invisíveis para o resto do mundo me passou pela cabeça e eu comecei a duvidar da realidade que eu percebia. Neste breve instante, muitas batalhas se passaram perante meus olhos navegadores: testemunhos de angústias, medos, esperanças, desilusões e um amor tão terno e longínquo e profundo...

Sufocada de tanto amor, dor e cicatrizes, olhei-a sem poder extrair de mim mesma uma ínfima palavra – porque adressar palavras à uma visão? - e fugí. Em um canto de minha alma eu soube que ela tinha chegado de um mundo que nós dois conhecíamos. Eu e ele, o remador.

Em passos rápidos, quase correndo, desci a rampa e saí do parque em direção aos carros estacionados e foi o tempo suficiente para ousar um último olhar de soslaio, quando a vi que me observava - ela e seu olho único-. Sua boca naquele instante mesmo se abrindo lentamente para balbuciar uma quase canção que ia ficando de mais em mais suave e se terminando por um som tão cristalino que criava ecos nas árvores que nos circundavam. O vento que turbilhonava se acalmou enquanto permanecia uns restos de sons e vibrações quase inaudíveis de assobios de cobras, canções de pássaros, mergulhos de peixes e sorrisos de crianças. Distinta imagem foi ela, a que me acompanhou, a de sua boca redonda de estupefação, do canto misericordioso e das rendas de seu vestido na neve molhada; seus cabelos eram um labirinto de fios de ferro e serpentes.

(extraído do texto "Gorgô, ou La mort dans les yeux", da minha própria pluma e publicado em junho 1996 pela revista Concordia, Montreal).


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