Writing, Flying and Huevos Revueltos

April 02, 2007

Meu tenebroso e indomável heroi, no filme "Immortel", de Enki Bilal

Em setembro 2005, escrevi um post p/ falar do filme Immortel, de Enki Bilal. Como foi escrito em francês, e que me pediram agora p/ traduzir, aí vai um novo post em português:

Sempre fui hipnotizada pelo mundo mágico das HQ. Socialmente selvagem, no final da infância e da adolescência, havia entretanto um grande número de meninos que vinham tocar a campainha na minha casa, interessados pela minha coleção de heróis. Partilhávamos o mesmo interesse por este mundo que, ao contrário do que a maior parte dos pais diziam na época, não representava um passaporte p/ a ignorância. Muito aprendi, em termos de cultura geral, através destas histórias mas o mais importante era que as HQ representavam p/ mim um momento de catarse, única ocasião aonde eu podia deixar minha imaginação vagar livre de obstáculos. E com eles, os personagens, eu podia atravessar universos surreais e destituídos de toda a lógica que o mundo real à minha volta teimava em me obrigar à atravessar.

Amante impenitente dos irmãos Grimm (por causa deles levei surras homéricas...) e embora tenha relido inúmeras vezes os mesmos livros já alquebrados da minha vizinha Magda, por falta de outros eu relia tbém a Bíblia -livro cheio de recitos mágicos, não duvidem, a bíblia é um poço de danações profundas e edificantes p/ quem tem o vício da leitura!- Pelo único prazer de ler histórias, creio que, efectivamente, li o antigo testamento integral aos nove anos! Se tivessem me perguntado, na época, eu teria podido descrever as gerações dos reis de Israel, as guerras, os pecados e os amores, sobretudo do rei Davi, sem esquecer a loucura de Absalão, a revolta de Tamar, a beleza e a inteligência da rainha de Sabah, a sabedoria de Salomão... enfim, um mundo sem fim de nascimentos, vidas e mortes... E o amor e a vingança deste deus que era chamado, lembro-me bem, de o Senhor dos Exércitos!

Em todo caso, a minha única porta de saída p/ o mundo triste em que eu vivia era, em uma certa época, os heróis Marvell e a minha coleção de Mitologia Greco-Romana, da editora Abril. Únicos tipos de leitura que eu podia pagar -mesmo a coleção de Mitologia eu não pude continuar e parei no número 30! Até hoje eu lamento isso!!- naquele tempo. Eram tempos de vaca magra e de ditadura -morávamos em uma cidade conhecida como O Açougue, por causa do quartel das Forças Armadas-. As histórias chegavam nas bancas de duas em duas semanas, ou mais, e os que não tinham um pai rico deveriam escolher só uma história e trocar após leitura, mas sempre guardavámos os melhores exemplares. Nesta época, aprendi muita coisa, entre elas uma das forças do budismo, o despreendimento; outra coisa foi apreciar no seu justo valor as belas coisas que nos rodeiam, como os livros, não somente em forma de conhecimento mas tbém como objeto de beleza e sensualidade.

Adolescente, fiquei deslumbrada quando o meu velho Batman se tornou de repente um herói atormentado e existentialista, cercado desta sombra tenebrosa que nos seduzia à todos e que só em 2005 foi realmente personificado no cinema através do filme Batman Begins. Gostei tanto daquela voz profunda de Christian Bale que caracterizava tão bem o meu heroi em todo seu explendor!
O heroi existencialista que observava o mundo do alto das noites frias de Gothan, como um anjo dilacerado de dor e penumbras, foi demais para o meu pobre coração já abimado e repleto de eternas súplicas de revoltas; ele passou a ser o pássaro negro que eu carregava sobre os meus ombros cansados e com quem eu atravessava o outro lado do oceano para poder chegar à ilha dos meus sonhos.

Este post foi escrito p/ explicar porque adorei a poesia de "Immortel", filme de Enki Bilal, adaptado de sua HQ La Foire aux Immortels; ela faz parte de uma trilogia, juntamente com La Femme Piège e Froid Équateur. Foi, um dos primeiros entre pouquíssimos filmes no mundo inteiro, filmado inteiramente em "digital backlot" (atores foram filmados na frente de um blue- and green-screens e o fundo foi acrescentado na post-production, uma técnica sómente usada na época pela TV, video e videogames). P/ quem curte histórias inteligentes e cheias de mistério, existencialismo e fantasia, além é claro, que gosta de ser seduzido por um design sonoro mágico e que nos permite de aprofundar na fantasia/filosofia de um complexo conceito de humanidade/mito/amor e eternidade, eu recomendo este filme.
Confiram um trailer e o site oficial.