Acabei de falar com a Cláudia depois de algumas tentativas skypianas, a ligação p/ a França sendo quase sempre ruim enquanto p/ o resto do mundo é muito boa mesmo, melhor que telefone. Na nossa conversa, alguma coisa me fez lembrar de dois colegas de escola, e antes de ir p/ a praia eu vou contar isso aqui. Faz mesmo um tempo que estou pra contar e, se duvidarem da veracidade da coisa, dou até o nome da escola: Colégio Marcello Fonseca Drable, em Barra Mansa, RJ.
Eu tinha dois colegas de classe, um que se chamava Divino Messias do Espírito Santo e que a gente chamava ora Divino, ora Messias; e um outro cujo nome de família esqueci mas que se chamava Delírio. E a gente dizia assim: "Divino, me passe este lápis por favor!... ou "Delírio, a professora tá te vendo!" .
Eu dava muita cola p/ o Delírio, pois ele era o típico rebelde, gozador, sedutor, contra-corrente, e que não queria saber nada de regras, disciplina ou estudos, enquanto o Divino era, como dizia a minha avó, muito apessoado. Eram opostos. Estudamos juntos durante todos os anos de ginásio e muito provavelmente do primário também. O pior é que em todos estes anos, eu e nenhum de meus colegas de classe tomamos consciência do absurdo da coisa. Foi preciso crescer, casar, ter filho e envelhecer p/ estes dias eu acordar e pensar: Êpa! o Messias chamava-se Divino Messias! E aí fui me lembrando que todo santo dia a professora fazia a chamada e repetia o nome completo de cada aluno em voz alta, e a gente ficava de pé e respondia por "Presente", mas ninguém ria nem comentava e duvido que na cabeça de algum de nós tenha passado uma sensação de estranheza ao ouvir o nome de cada um deles. Se fosse isso, existiria piadas, mas nunca existiu. Nem durante, antes e nem depois da aula. Estranhamente, p/ nós chamar-se Divino Messias do Espírito Santo era algo tão normal quanto chamar-se Delírio!!
Nem quando eu comecei a colecionar Sandman, que tem um irmão que se chama Delírio, eu acordei p/ o absurdo da coisa. Sandman é uma história em quadrinhos e a maioria dos personagens são oriundos da imaginação fértil de Neil Gaiman. Mas Gaiman, na vida real, não colocaria o nome de Delírio em um de seus filhos, eu tenho certeza. Os pais do Delírio eram certamente poetas e os do Divino, amendrontados.
Delírio era loiro, cabelos encaracolados, pele rosada. Tinha cara de anjinho de missa, mas era um capeta. Imagino que seja o único Delírio do mundo! A maioria das meninas não queriam nem ficar do lado dele por puro medo pois ninguém sabia o que ele podia aprontar. Ele gostava muito de mim e de uma outra amiga nossa, a Tânia Cunha, talvez por que além de eu viver dando cola p/ ele nas provas, nós éramos únicas meninas que não fugiam à sua presença. Por isso, de vez em quando ele aparecia com umas balinhas e bombons p/ nos presentear. Depois ficamos sabendo que ele roubava estes bombons e balinhas dos despachos que encontrava nas encruzilhadas, sobretudo em época de Cosme e Damião, mas não era de maldade não, p/ ele isso era uma honra. Ele jupava também as balinhas do despacho junto com a gente, todo orgulhoso de estar em nossa compagnia, sentados os três no banco da praça, ele, satisfeito de si mesmo, jogando algumas das balas chita nos automobilistas que faziam o balão da pracinha do bairro Ano Bom.
Já o Divino era um neguinho bem tino, raquítico, sorridente, humilde e simpático. Parecia um espermatozóide com aqueles olhos brancos e grandes que se destacavam na cabeça de um corpo que carecia de gordurinhas. Desconfio que recebeu o nome por conta de promessa p/ tentar salvá-lo desta sina triste, pois o menino carregava o nome com justeza. Aliás, todos dois carregavam, cada um, um nome que lhes iam muito bem com a personalidade. A lembrança mais punjente que tenho do Divino -após o nome, a figura de cabeçona e o sorriso muito branco- é o dia em que ele caiu num barranco e saiu amparando um dos olhos nas mãos. No começo eu vi aquilo e não entendi direito pois tinha ouvido um grito, olhei p/ o barranco e vi ele andando com a criançada toda às voltas, ele, o pobre, com uma urgência nos gestos, sério e sem tempo p/ choros, que aparava com as mãos um monte de fios coloridos em violeta e vermelho, alguns poucos azuis. A lembrança que guardo é sobretudo deste violeta, cor bonita e que me ficou na memória depois que eu entendi que aquilo era de verdade um olho. Eu nem sabia que olho saía assim e que a gente podia segurar com as mãos. Aparentemente ele sabia e fez a coisa certa sem alardes, objetivamente pragmático. Ele deveria ter uns 11 anos nesta época.
K.
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Mais surrealista do que este caso aí em cima é um outro contado por um conhecido meu que viajou por várias regiões do Marrocos, encontrando uma venda de dentaduras em um destes mercados ao ar livre. No lugar tinha uma barraquinha cheia de dentaduras de todos os tipos e tamanhos. O cliente que vinha atrás de uma dentadura, pegava algumas p/ experimentar, colocava a dentadura na boca, olhava no espelho e se não gostasse colocava de novo em cima da mesa. O próximo cliente vinha e fazia a mesma coisa, e cada uma das dentaduras tinha sido já experimentada várias vezes por vários compradores potenciais destentados, de boca em boca, de banguela em banguela, de saliva em saliva.