Bom, era sete horas da manhã quando as dores começaram, e eu fui acordando com aquela pontada muito aguda na região da bexiga. Foi uma dor muito forte mas parou logo, foi realmente só uma pontada p/ me acordar. Eu sabia que eram as tais dores de parto que começavam 2 dias antes da data sugerida pela minha médica. Os cálculos, em todo caso, estavam exatos pois ela nasceria num dia 5 ao invés de um dia 7 (diferença mínima...).
Algum tempo depois, foi começando uma dorzinha aqui, parava, e uma dorzinha ali, e recomeçava. Mas não era mais aguda não, parecia cólica, mas fraquinha. Só que levava um tempo p/ recomeçar, e foi assim durante uma boa parte do dia, diminuindo o tempo entre as tais cólicas, que eram de verdade as famosas contrações. A dor só ficou forte mesmo depois de 6 horas da tarde. Antes disso, eu aguentava numa boa, andando sempre de um lado p/ outro dentro de casa, tomando chá de framboeza, que a parteira me aconselhou p/ ajudar no trabalho. Já faziam 2 dias que eu estava com uma energia monstro, e a única forma de canalizar esta energia nesta hora de dor e espera era andar dentro do apartamento, que eu fechei à chaves. E avisei à meu marido p/ não atender o telephone e só ligar p/ o hospital quando eu lhe desse o sinal vermelho.
No parto, eu comecei a me transformar num animal. De verdade, esta transformação já tinha começado antes do quinto mês de gestação, mas tão selvagem que eu não conseguia entender nem identificar. Antes do quinto mês, eu estava frequentemente com uma náusea insuportável e com um sono insaciável. Minhas náuseas eram tão fortes e frequentes que comecei a constatar que a causa era não somente os odores que eu sentia, mas os odores que eu pressentia. Uma vez andando na rua, cruzei com um homem na calçada, um homem muito bem vestido, aparentemente limpo, terno e gravata, carregando uma pasta. O bairro era de classe media alta e o lugar anode estávamos era frequentado por homens de negócios. No exato momento em que este homem passou do meu lado, eu virei p/ o outro lado para vomitar. Foi incontrolável. Ele exalava um odor tão terrível que de longe eu já tinha dedectado a sua presença e ficava tentando controlar meu impulso de vomitar e correr.
Uma das primeiras mudanças que percebi, logo no início da gravidez, foi a sensação de ter um radar com o qual eu estudava continuamente o meu meio-ambiente. Eu funcionava como se este radar me guiasse, e no meio da rua, eu era sempre rápida, lançando olhares rápidos à minha volta, e mesmo quando eu não olhava, minha atenção estava total e em vários lugares ao mesmo tempo, dedectando todos os gestos e intenções da multidão. Mesmo se as pessoas sempre me percebiam como alguém muito calma e tranquila, existia um computador potente na minha cabeça, ou na minha barriga, trabalhando ao máximo e sem nenhum esforço, estudando tudo ao meu redor.
Esta sensação só ficou mais evidente, como eu disse, depois do quinto mês, porque parei de dormir tanto, as náuseas desapareceram e eu me sentia bem melhor. Eu tinha uma energia enorme. Ter náuseas intermitentes durante cinco meses foi uma experiência difícil, mas depois disso, eu me transformei num ser forte e invencível, pronto à atacar ou fugir ao mínimo sinal de perigo, mas sem alguma violência, sem algum estress. Eu estava totalmente centada e muito segura de mim mesma, sabendo exatamente aonde meus pés pisavam, eu "farejava" os lugares e pessoas.
Mas, na época, eu ignorava tudo isso. Foram mudanças que, mesmo se não passaram despercebidas no momento, eu nunca realmente questionei. Mas durante o parto me aconteceu essa experiência que eu vou contar aqui, e foi depois dela, com o passar do tempo, relembrando esta experiência, que eu comecei à corrrelacionar as coisas e identificar claramente, e p/ mim mesma, estas mudanças que agora estou relatando.
Acho que todas as mulheres passam por isso. Mas eu estava numa situação relativamente isolada, sem amigos ou familiares por perto, ocupada com meus estudos – o que me impedia de estar frequentemente com outras pessoas com exceção das pessoas na universidade, sem contar que os amigos da minha própria cultura eram homens, e homens não se interessam muito por mudanças na vida de mulheres grávidas – e o fato de eu estar me adaptando com a cultura canadense era um ponto importante. Estar assim isolada não me incomodava nem um pouco, muito pelo contrário, eu realmente usurfruia deste tempo para direcionar toda a minha atenção na observação desta transformação, sem explicações alheias para deturpar minhas observações. O que me ajudou realmente foi meu senso de independência. Eu sempre me surpreendo com pessoas que têm a necessidade da opinião dos outros pois embora muito sociável – adoro conversas e papos furados no meio da rua, num café, saber como estão indo, o que estão fazendo, etc -, mas sou muito introspectiva também. Preciso estar comigo mesma, no silêncio. Gosto de observar as coisas. E estar grávida p/ mim era algo tão natural, e ao mesmo tempo tão íntimo, que eu realmente nunca tive a necessidade de compartilhar, no momento em que acontecia, porque minha atenção estava em observar. Eu observava, simplesmente, sem analizar, ou querer respostas. Hoje em dia é diferente. Eu já analizei, tenho respostas e vontade de compartilhar esta experiência.
Tenho um amiga que já me confessou ‘várias vezes’ que a vontade de ficar grávida só lhe veio depois que ela me conheceu grávida, pois eu não andava e nem funcionava como as outras grávidas que ela estava acostumada à ver (hoje, o filho dela é um ano mais jovem que minha filha, e ela é a minha melhor amiga aqui). Isso porque em Montreal, não sei exatamente a razão, a maioria das grávidas têm um ar de doentes e andam com dificuldades, mesmo nos primeiros meses de gravidez, e mesmo as mais jovens. A sociedade trata a mulher grávida como doente, como alguém que está sempre precisando de cuidados, dependente, acho mesmo que como uma pedra no sapato. Não quero radicalizar, mas olhando algumas mulheres grávidas eu tenho a sensação que elas mesmas transmitem esta sensação. Acho que deve ser psicológico! A grande maioria anda como se tivessem um peso enorme na barriga! Coisa que parece ser normal nos últimos meses de gravidez, mas nem isso eu tive pois mesmo dois dias antes de ter o meu bebê, eu ainda ia frequentemente na Escola Politécnica, aonde trabalhava meu marido, e subia aquela escadaria enorme sem alguma dificuldade. Nesta época eu frequentava a universidade, e minhas colegas me diziam frequentemente que a gravidez me ia muito bem, e que elas nunca tinham visto uma grávida se sentir tão bem no seu corpo. Eu sabia que era sincero pelo olhar de admiração delas. Eu fiquei grávida um ano depois de ter chegado aqui, talvez não tenha tido tempo de ser invadida por esta percepção da sociedade. Talvez. Eu realmente não tenho resposta p/ isso, mas me lembro de ver no Brasil muitas mulheres grávidas como eu neste período. Lembro-me que na semana do meu parto, indo p/ a universidade de metrô, eu e outra mulher éramos as únicas de pé dentro do trem. Ela fez um escândalo, xingando todos presentes porque eles viam que eu estava grávida, carregando peso, e ninguém tinha tido a educação de me oferecer uma cadeira. Eu me surpreendi com duas coisa; primeiro, que uma canadense tenha reagido face à isso e segundo, porque, com toda sinceridade, não tinha percebido a situação! Na maioria das vezes, eu não pensava na minha gravidez, e não me via barriguda nem frágil. Embora ela tivesse totalmente razão sobre a falta de educação do povo neste caso, mas isso faz parte da cultura daqui (eu não me incomodo tanto, não à ponto de me revoltar, porque sei que é cultural e a minha revolta face à isso não vai mudar as coisas. Embora reconheça que com um pouquinho de empatia, individualmente falando, este tipo de comportamento social poderia ser extirpado. O que eu faço é dar o exemplo de civilidade oferecendo meu lugar para os mais velhos, para os doentes, para crianças e para as grávidas; usando sempre as palavras mágicas “obrigada” e “por favor” e abrindo portas para os que passam, segurando portas depois que eu passo, etc. mas a maioria não compreende mesmo. Como se diz lá no interior da Bahia, fazê o quê, Santo Deus?! A astúcia é sempre ficar atento p/ não levar literalmente uma “portada“ na cara).
Até o sétimo mês de gravidez eu recebia cantadas por parte de muitos estudantes bem mais jovens do que eu, e que aparentemente não tinham sacado que eu estava grávida. Recebi cantadas descaradas, o que não acontecia antes da gravidez. Eu ficava realmente sem saber o que pensar, talvez tenha sido meus seios que ficaram enormes, não sei. Isso p/ mim foi um outro mistério. Embora eu não tenha engordado muito, eu estava mais cheiinha e barrigudinha. Mas, antes de tudo, eu estava felicíssima. Ficar grávida, foi um presente enorme que a vida me deu. Talvez teha sido o furor de viver que me envadiu.
A possível transmutação da dor durante o parto
Eu teria que ter um outro filho para me certificar disso e passer por um outro parto. Mas a experiência poderá servir à muitas futures mães de todas as idades, e mesmo àquelas que não se interessam a ser mães - o que é natural porque as mulheres não deveriam ser mães só porque têm orgãos que servem para se reproduzir-. Acho que é uma decisão estritamente individual, e não cabe à um governo e nem à um indivíduo outro que a própria mulher, pois se trata de seu corpo, de ter uma opinião ou decidir. Para algumas mulheres e em certos períodos de suas vidas, como foi para mim, a experiência de ser mãe é algo que elas desejam muito conhecer. E o que eu descobri é que existe em mim uma força que se revelou durante o parto, mas que já estava presente durante a gravidez, e esta força tinha um instinto tão forte e conectado com o mundo ao redor e com meu corpo, que eu compreendi intuitivamente a forma de ultrapassar a dor do parto.
- - - - - - - - - - - -- terminarei este texto no próximo post.- - - - - - - - - - - - - - - -